Quando o Coração Sangra

E, para encerrar a “Trilogia dos Quandos”, reuni mais 13 contos em um livro. Treze narrativas que fazem sangrar o coração das personagens ou do leitor. Histórias de melancolia, psicopatia, fobia, desesperança, vício, imprudência, distúrbio, desejo, decepção, tragédia, frustração, punição e perdição. Histórias sem redenção. Porque quando o coração sangra, o estômago chora. 

“Acabo de ler ‘Quando o coração sangra’, o terceiro livro de contos de Eliete de Fátima Guarnieri, que traz as mesmas marcas de autoria dos livros anteriores: atualidade na matéria e estilo certeiro – simples apenas na aparência.

As histórias “Profano” e “Desejo” são obras-primas indiscutíveis, que vão inquietar o leitor. Paira na coletânea inteira um clima de dark novel que é o fundo da literatura contemporânea.

Em relação às obras já publicadas por Eliete, a intensidade é mantida, talvez com mais decisão e domínio dos recursos de criação. Machado de Assis gostaria de ler esses contos, que começaram a fluir em seguida a uma recusa indiferente – num jornal de Piracicaba.

Sofrimento faz muito bem ao escritor.”

Por Mafra Carbonieri.

*Mafra Carbonieri nasceu em Botucatu (SP) em 1935. Formando-se em direito, foi advogado, promotor público e juiz criminal. Isso o levou à análise e ao conhecimento de graves conflitos humanos – em situações que frequentam largamente a sua criação literária. Sua obra abrange contos, novelas, romances, poemas e ficção infantil, obtendo reconhecimento também no exterior, com diversos prêmios. É autor de Os gringos, O motim na Ilha dos Sinos, Um estudo em branco e preto, Arma e bagagem, Homem esvaziando os bolsos, Poesia reunida, além de outros livros. Membro da Academia Paulista de Letras.

“Ao mergulhar nas páginas de “Quando o Coração Sangra”, senti como se navegasse por um mar interior, onde cada onda revelava partes ocultas de minha própria alma. A cada conto, a autora parecia estender a mão e guiar-me em um passeio à beira-mar com emoções que eu mal sabia nomear, como se o som das ondas ecoasse em minha própria essência. Foi uma jornada íntima e transformadora, onde as palavras não apenas contavam histórias, mas ressoavam como o mar dentro de nós, nas noites em que simplesmente somos.

Foram horas incógnitas, momentos sucessivos nesse passeio em que fui e sofri em mim mesmo; todos os pensamentos que têm feito as pessoas viver, todas as emoções que elas deixaram de viver, passaram por minha mente nessa peregrinação pelas areias das praias que sentimos nos alagamentos dos sentimentos.

Nas profundezas do coração humano, emoções se agitam, vastas e misteriosas como o oceano, carregando segredos e dores que se perdem na impossibilidade das palavras. Ainda assim, como o mar que encontra a terra, aquilo que o coração carrega sempre emerge, traduzido, mesmo que em fragmentos. “Quando o Coração Sangra” nos convida a navegar por essas águas turbulentas, revelando segredos que apenas o silêncio conhece.

A autora, com sua prosa intensa e original, guia-nos por uma travessia íntima, onde cada página é uma onda que nos move em direção ao autoconhecimento e à compreensão das dores e belezas da existência.

Este livro é uma tentativa de dar forma ao inefável, de traduzir em palavras aquilo que muitas vezes nos escapa. A singularidade da autora reside em sua capacidade de explorar os recantos mais profundos do ser, revelando emoções universais de maneira única e autêntica. Seus contos não são meras histórias; são reflexos das tempestades internas que todos enfrentamos, espelhos onde contemplamos nossas próprias angústias, esperanças e desejos.

Os contos que compõem esta obra estão entrelaçados por temas centrais que permeiam toda a narrativa: a solidão, a busca por sentido, a dualidade entre beleza e dor e a incessante peregrinação da alma humana. Cada narrativa é uma faceta desse mosaico emocional, oferecendo ao leitor uma experiência que exige ser sentida, não apenas lida.

Ao leitor, cabe aqui um convite: mencionarei apenas algumas dessas narrativas, como quem aponta algumas estrelas em uma constelação infinita, ciente de que o brilho das demais reside em seu mistério.

No conto inaugural, as palavras se arrastam densas, encharcadas de melancolia, como se cada frase fosse o eco de uma lágrima derramada em silêncio. Somos confrontados com a ideia de que a arte, em sua forma mais pura e intensa, muitas vezes nasce da dor. A escrita transforma as angústias da alma em obras que ressoam profundamente.

“Réquiem” é um mergulho na profundidade da solidão. O protagonista, Mauro, envolto em um vazio implacável, busca uma paz que parece inatingível. Ele não encontra sonhos, apenas o vazio que ressoa a cada batida oca de seu coração. Como em Dostoiévski, a autora nos leva aos confins do ser humano, expondo com honestidade brutal o que há de mais sombrio em nossa psique. A referência ao sétimo círculo do Inferno de Dante, guardado pelo Minotauro, simboliza a violência cega e desesperada do coração humano quando tomado por emoções indomáveis.

“Manhã de Novembro” nos leva à contemplação da beleza fugaz da vida, ao limiar onde a existência roça seu fim, como uma onda que quase toca a costa e se desfaz. Um ciclista, deslizando em uma manhã qualquer, é surpreendido pela morte. A prosa evoca a impermanência que poetas e filósofos há muito buscam compreender — a ideia de que a beleza contém em si o prenúncio de sua finitude. Somos lembrados de que a vida é uma trama delicada de instantes e incertezas, como uma melodia interrompida em seu auge. O encanto da vida reside justamente na presença constante e invisível da morte, que nos obriga a sentir cada batida de nossos corações como se fosse a última.

“Dezesseis Anos” é uma celebração agridoce dos sonhos artísticos, daqueles que nascem com intensidade quase sagrada, mas que o mundo insiste em desconsiderar. A referência a Machado de Assis conecta a protagonista à tradição literária e ao sonho de conquistar seu espaço. É um eco da luta de tantos jovens artistas cuja arte e talento são subestimados, mostrando a necessidade de olhar para dentro e manter o próprio ritmo quando o mundo tenta silenciá-los.

No conto final, “Heresia”, a transgressão e o desejo se entrelaçam. Uma freira, que jurou obediência ao sagrado, rende-se ao proibido como quem se lança ao abismo. O aspersório, símbolo de purificação, torna-se instrumento de condenação e redenção. O coração que sangra é aquele que ousa desafiar o sagrado e que, ao ceder ao desejo, encontra uma paz fugaz e trágica. A narrativa explora a dualidade entre o sagrado e o profano, mostrando que a verdadeira prisão talvez esteja na repressão de si mesmo, e não nas regras impostas.

“Quando o Coração Sangra” encerra a trilogia dos “Quandos” da autora, completando uma jornada literária que começou com “Quando o Estômago Grita” e “Quando a Alma Viaja”. Cada livro representa uma etapa na peregrinação da alma, explorando diferentes aspectos da condição humana. Nesta obra final, todas as dores, revelações e silêncios convergem, oferecendo ao leitor uma visão profunda e tocante da existência e da relação intensa — e, por vezes, cruel — entre o homem e o mundo.

A autora nos entrega um livro que é, em sua essência, uma ode ao ser humano — um ser que sangra, ama e sonha. Como o mar que reflete o céu, cada página deste livro nos mostra um fragmento de nossa própria alma, um espelho onde contemplamos as ondas de nossos desejos, medos e esperanças.

Nosso estômago grita por aquilo que não alcançamos, uma fome de vida que nada sacia. Nossa alma viaja em busca de significado, ansiando tocar o infinito. E nosso coração sangra — é nele que os anseios se encontram e se rompem, onde o peso da vida se acumula e transborda.

Assim, seguimos entre gritos e silêncios, viagens e retornos, à beira do infinito. Somos esse grito que não se apaga, essa alma que não sossega e esse coração que, mesmo ferido, persiste em pulsar. “Quando o Coração Sangra” nos convida a abraçar nossa vulnerabilidade e a reconhecer a beleza que existe na dor e na busca constante por sentido.

Este livro não é apenas uma leitura; é uma experiência que desafia o leitor a mergulhar profundamente em si mesmo. A autora nos oferece não respostas, mas reflexões, instigando-nos a contemplar o mistério e o insondável que habitam em cada um de nós.

Prepare-se para uma travessia intensa e transformadora, onde cada pagina é uma onda que o levara a lugares inexplorados de si mesmo. “Quando o Coração Sangra” é uma obra que nos lembra que, apesar das tempestades internas, continuamos navegando — e que há beleza e verdade a serem encontradas mesmo nas águas mais turbulentas.

Prefácio de “Quando o Coração Sangra”, por Rafael Ângelo Tineli

Dr. Rafael Ângelo Tineli é cirurgião cardiovascular e intensivista, formado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. É especialista em Cirurgia Cardiovascular pelo Instituto do Coração da FMUSP e pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV), e em Medicina Intensiva pela AMIB, além de membro da European Society of Intensive Care Medicine (ESICM).

Ao longo de sua trajetória, percorreu uma jornada singular entre a precisão do gesto técnico e o silêncio do cuidado, reconhecendo que o coração — em seu sentido mais amplo — sangra às vezes, mas sangra para viver. Atua na coordenação de unidades de terapia intensiva guiadas não apenas pela lógica dos protocolos, mas por um olhar que reconhece, em cada leito, a singularidade de uma vida que resiste, silencia e, às vezes, sussurra. Acredita que a medicina só se realiza plenamente quando reconhece a condição humana do outro — e de si mesma.

Cultiva, assim, a convergência sutil entre a arte e a medicina — territórios distintos, mas não distantes — onde a palavra, o bisturi e o olhar atento se encontram na mesma missão: tocar, com precisão e compaixão, aquilo que, mesmo invisível, pulsa mais fundo — a vida.

Le cœur saigne quelquefois, mais il saigne pour vivre.